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quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Igor Lima Ribeiro






Despedida do Bar do Chaguinha - 26 de Julho de 2015














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15 de outubro, dia do professor: há o que comemorar?

por Américo Souza

Sempre achei que ser professor é mais do que pertencer a uma categoria profissional. Tão pouco considero que seja um sacerdócio, ou uma vocação abnegada de pessoas iluminadas. O que significa então ser professor? Esta é a pergunta que se instalou em minha cabeça há 15 anos, quando iniciei na docência. Ainda não tenho uma resposta precisa para oferecer, mas gostaria de compartilhar aqui algumas reflexões que me fazem acreditar que estou mais próximo de tê-la.

Costumo pensar que eu caí na docência por acaso, que o que eu queria mesmo, quando ingressei no Curso de Licenciatura em História, foragido da Engenharia, era ser um oráculo que falasse frases belas e de efeito, que todo mundo achasse o máximo. Ser um pesquisador brilhante, agente de descobertas que mudariam a forma como pensamos a trajetória histórica do Brasil e do mundo, esse era o meu pretencioso sonho de calouro.

Sim, eu já fui um abestado, talvez tenha sido o maior de todos.

Naquele tempo ser professor apresentava-se a mim como algo que exigia um sacrifício altruísta do qual eu não era capaz.

Guardava comigo muito respeito e admiração pelos meus professores, mas
guardava também, seus lamentos pelas condições de trabalho desfavoráveis: infraestrutura comprometida, ambiente de trabalho desconfortável, parcos recursos financeiros, limitações de materiais didáticos-pedagógicos e tecnológicos, o peso da burocratização, o desinteresse da maioria dos estudantes, dentre outras. Não me concebia capaz de enfrentar tudo isso. No entanto, compelido pelo previsível fracasso do idílio primeiro e pela necessidade do vil metal, ministrei minhas primeiras aulas em março de 2000, no Curso de História do Campus de Araguaína-TO da então UNITINS, hoje UFTO,

Passados 15 anos, posso dizer-lhes que sou aquele professor que adora o período de férias, quando os estudantes desaparecem e tudo se aquieta, como a calmaria que se segue à tempestade. Os primeiros dias são de um alívio regenerador, os demais de uma sofreguidão ansiosa, quase uma crise de abstinência; desejo inconteste de que as aulas recomecem: a gente não sofre de emoções, sofre de retórica, aprendi um dia desses.

Pois bem, hoje me sinto – e me sinto feliz, importa dizer – mais professor do que historiador. Por que me sinto assim? Esta é a segunda pergunta que mais escuto (a primeira é se a atividade que pedi à turma vai valer ponto), e a que mais faço a mim mesmo.

O discurso pedagógico dominante no senso comum responsabiliza em demasia os professores quanto à prática pedagógica e à qualidade de ensino. Embora isso apenas reflita a realidade de um sistema centrado na figura do professor como condutor visível da ação educativa (algo que precisamos mudar com urgência), reflete, também, como a sociedade atual afeta a educação formal (escolar e universitária), transferindo a esta e, principalmente, aos professores, um número cada vez maior de funções, para as quais muitas vezes não estamos preparados e, muitas vezes, são funções não relacionadas diretamente com a nossa profissão. É preciso ter clareza das funções do professor para não se sujeitar à desprofissionalização.

A partir de minha experiência individual e particular como docente percebo que, para além da complexidade inerente à docência, ao estar em sala de aula (este universo plural, de múltiplos desejos, expectativas, afetos, dores e prazeres), colocam sobre os nossos ombros uma carga extra de responsabilidade, que, em muitos aspectos resulta do abandono que as famílias e a sociedade dedicam às crianças e aos jovens, para os quais já não têm tempo, nem paciência e, por isso mesmo, delegam ao outro incumbências que são suas.

Tudo bem, você deve estar pensando, mas o que isso me diz sobre o “sentir-se feliz” mencionado anteriormente? Isso diz muita coisa, acredite. Muito embora a sociedade e em especial as famílias devam assumir suas reponsabilidades educativas, esse movimento de hiper-responsabilização dos professores tem algo a nos ensinar. A vida não existe como uma engrenagem perfeita, com cada peça exercendo sua função e nada mais que isso. Na vida a regência maior é feita pelo imponderável e não pelo previsível. Compreender e aceitar esta realidade é difícil. Por isso ficamos doentes de
tanto buscar uma harmonia plena, que não existe.

O trabalho do professor, como eu o concebo, é uma ação transformadora tanto objetiva, quanto subjetiva, revestido de peculiaridades que lhes são próprias. Devemos ensinar história, matemática, engenharia, agronomia, mas também devemos provocar em nossos estudantes reflexões sobre a vida, sobre suas dores e delícias. Em outras palavras, assim como não devemos nos deixar sobrecarregar assumindo responsabilidades que são de outros, seguramente não podemos cair da esparrela de formar crianças e jovens para que atinjam metas objetivas e estreitas, como passar no ENEM, ou ingressar bem no mercado de trabalho. Não podemos empobrecer o universo.

Estou em pleno acordo com o filósofo Mário Sérgio Cortella, quando este afirma que todo professor íntegro (que o é por inteiro) leciona por amor. Não por amor ao trabalho, como já insinuou um certo político, mas por amor à ideia de que gente foi feita para ser feliz, ou, como disse Caetano Veloso, “para brilhar e não para morrer de fome”.

Por isso mesmo não acredito em uma docência que não sofra da incapacidade de achar que as coisas são como são e não há alternativas. Mudar o modo como as coisas são é, ou pelo menos deveria ser, o princípio (fundamento), o meio (método) e o fim (objetivo) da prática docente.

A educação é um espaço de conflitos, rejeições, antipatias, paixões, adesões, medos e sabores. Por isso a prática docente exala humanidade e precariedade. A criação e a recriação do conhecimento não estão apenas em falar ou fazer coisas prazerosas, mas, principalmente em falar e fazer as coisas com prazer. Quando um educador encontra alegria em seu ofício, ele inspira interesse pelo que ensina e isso o faz feliz.

Isso me faz feliz, porque renova em mim a esperança de que o mundo pode ser um lugar. Há quem diga que, em se tratando da realidade educacional brasileira, esta esperança é uma tolice. Como se ter esperança se temos que ministrar aulas em salas precárias e lotadas, se não há os recursos técnicos necessários, sem um salário suficiente, sem a necessária valorização pela sociedade? Pois bem, é justamente em condições adversas que a esperança se faz ainda mais necessária, mesmo
imprescindível. Só se desiste de algo, ou de alguém, quando morre a esperança. Se não posso desistir da docência, igualmente não posso perder a esperança de que ela pode sim modificar as pessoas e as coisas. Como bem disse Belchior, “Amar e mudar as coisas, me interessa mais”.

Por fim, em resposta à pergunta que nomeou e inspirou este texto eu digo: sim há o que comemorar. Há que se celebrar a persistência da esperança em poder fazer do mundo um lugar melhor do que é hoje.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Quem dera ser um hub

por Sandra Helena de Souza

Em tempos de acirramento feroz dos ânimos políticos, parece impossível encontrar alguma causa comum. O mantra ‘contra a corrupção’ sofre de desgaste crônico por variados motivos e mais divide que congrega. Além do mais, ser ‘contra’ não entusiasma tanto como ser a favor: a diferença entre luta reativa e criativa. Entre nós, no entanto, o milagre se viu nas capas dos jornais a partir de fina orquestração do governador Camilo Santana. Juntaram-se todos, nesse caso quase todos mesmo, desde o governador coronel dos tempos autoritários, o empresário, o político, prefeito, sociedade civil organizada, todos os partidos à exceção da extrema esquerda, mídia, todos. Nada parecido desde a luta pelas diretas.

Aliados, adversários e mesmo inimigos, todos perfilados atrás do governador, que assim demonstrou que o impossível tem endereço: o aeroporto. ‘Todos unidos pelo Hub da TAM’. “Unidos somos mais fortes. Precisamos fazer uma grande campanha aqui no Ceará para que possamos trazer esse empreendimento para nosso estado”, disse o governador na tentativa de sensibilizar os cearenses.

Consolidar a vocação turística e fortalecer a economia de serviços era então o que podia nos unir a todos. Como demoramos tanto a descobrir?

Os números dos Mapas da Violência e o recente IHA (Índice de Homicídios na Adolescência) têm afirmado repetidamente que são os jovens de camadas sociais mais vulneráveis as maiores vítimas da violência que se alastra pelo País. O levantamento feito pelo Programa de Redução da Violência Letal (PRVL do Governo Federal, em parceria com a Unicef, o Observatório de Favelas e o Laboratório de Análise de Violência da UERJ) mostra Fortaleza como a capital que tem o maior índice de homicídios entre jovens (9,9 por mil). O prognóstico é tenebroso: Fortaleza perderá 2.988
jovens de 12 a 18 anos mantidas as condições atuais.

Por seu turno, a justiça interdita centros de ressocialização de adolescentes em conflito com a lei e constata crise aguda no monitoramento de medidas socioeducativas em meio aberto. A crise econômica serve para justificar cortes orçamentários - que de resto sempre ocorreram mesmo em tempos de vacas gordas - que atingem em cheio as políticas de proteção social. Fala-se em redução de maioridade penal e chega-se mesmo a considerar razoável que se impeça a frequência da juventude pobre em praias e shoppings. A esmagadora maioria dos crimes de homicídio cometidos contra esses jovens, por outros jovens ou policiais, nem mesmo chegam a ser investigados. ‘Deixa morrer’.

Ao ver o noticiário sobre o ato de lançamento da campanha pelo hub, não consegui ficar indiferente ao extremo apelo simbólico das fotografias. Não é todo dia que se consegue reunir a nata da política e economia local em torno de uma pauta. Todos os antagonismos momentaneamente suspensos. Fiquei a pensar em todos os jovens que tombam miseravelmente e não viverão para ver o hangar da TAM. Sonhei com aquelas expressivas lideranças todas unidas pela infância e adolescência pobre do Estado. É pedir demais?
O governador já provou que pode. E quem pode o mais, não pode o menos?

http://www.opovo.com.br/app/opovo/dom/2015/09/26/noticiasjornaldom,3510362/quem-dera-ser-um-hub.shtml

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Dúvida

Valsa de Luiz Gonzaga e Domingos Ramos

Com Augusto Calheiros



Dúvida - Augusto Calheiros
Composição: Domingos Ramos / Luiz Gonzaga

Não sei por que razão
Tu tens ciúmes.
Não sei por que razão
Não crês em mim

Se sabes que te quero
Que o meu amor
É tão sincero
É demais duvidar tanto assim!
Ai de mim!

Não sei por que razão
Tu tens ciúmes.
Não sei por que razão
Não crês em mim!

Bem vês
Que vivo escravizado
E preso ao teu encanto!
Não deves duvidar assim
De quem te adora tanto!
Não deves duvidar de mim
Porque não tens razão!
Assim torturas sem querer
Meu coração!

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Esplar

Por Lena Leão


O Esplar lançou seu livro!

Mas, tem histórias e profissionais bons o suficiente pra lançar uma biblioteca.

Experiências lindas, pessoas raras, conquistas, resgates, mudanças são marcantes na trajetória dessa instituição cearense que ousa viver e resiste há mais de 40 anos.

E essa história é muito diferenciada pela coragem de ser uma ferrenha defensora da agroecologia; de apostar todas as suas cartas no feminismo; por querer incansavelmente entender e explorar o potencial do semiárido, pesquisando alternativas para conviver com as irregularidades do nosso clima sejam as secas sejam as cheias que sempre penalizam nosso sertão; por enxergar as crianças já como seres capazes não só de mudar, mas de melhorar o futuro, respeitando o (ante)passado... 

Quem conhece o Esplar conhece o exemplo de que "sonho que se sonha junto é realidade". E eu faço parte deste sonho.


terça-feira, 15 de setembro de 2015

Amorosidade Familiar

Por Zenilce Bruno

A base construtiva da família é a amorosidade cuidada, querida e apreciada como valor entre as pessoas. Amorosidade se constrói com palavras e ações, sentimentos e fazeres. Diria que somos todos responsáveis por nossos sentimentos em família. Uma vigilância sobre as impulsividades se faz necessária. E quando os filhos são adultos, eles são igualmente responsáveis pelo bem estar ou mal estar em família.
A casa, a família, os pais e filhos são as maiores referências do ser humano quanto aos afetos vividos. Afetos positivos e negativos. Amor, amizade, cumplicidade, ciúme, rivalidade e ódio. Lugar por excelência da ambivalência afetiva, a família se tece entre amorosidades e animosidades. Mais precisamente, entre amor e ódio. Talvez soe mal aos nossos ouvidos desejosos de mais amorosidades, dizer em voz alta que a família é também o lugar do afeto negativo, sofrido e destrutivo. Os fatos contemporâneos expostos pela mídia têm atestado sem pudor, que nessa cultura de superego frágil, são frequentes as atuações onde membros de uma família se maltratam, destroem-se, matam-se.
É tempo de acabar com a tirania de achar que os pais são os únicos, grandes e eternos responsáveis pela infelicidade dos filhos. Quando adulto, o filho tem que assumir seu estar no mundo, sua personalidade, corrigir suas falhas, buscar ajuda profissional para resolver-se e tornar-se melhor para si e para os outros. É preciso compreender, que dinâmica ancora as relações em pontos que estrangulam a amorosidade possível, no seio da família. Muitas vezes, só se expressa o desamor, a raiva, o peso das relações. É muito fácil em meio à impulsividade não medir as consequências da palavra (mal) dita. Por mais que seja verdade interna, é preciso ser sadio o suficiente para administrar a impulsividade e não abrir feridas tão profundas na alma dos pais e filhos. A saúde psíquica precisa ser mais buscada, mais desejada, nos dias atuais. É mais fácil enganar-se, tomar um remédio de leve, beber uma para esquecer, mas o fundamental é tratar-se, buscar ajuda eficiente que possibilite compreensão profunda da própria alma, dos nós que se formaram e que precisam ser desatados. Isso se compreende levando a sério um tratamento psicológico.
Na contra face disso, há na família, uma enorme capacidade humana de se plantar sementes preciosas, dizendo-se palavras (bem) ditas, fazendo-se mais declarações de amor. Como na família estão às relações mais sagradas de nossas vidas, é preciso muito cuidado para que elas não se pautem mais pelo ódio que pelo amor. O ódio que coexiste terá de ser compreendido, resolvido e superado para que não se instaure a impossibilidade amorosa entre pessoas que também se amam.
Muitas vezes a convivência com pessoas de valores negativos, amigos e amores inadequados, geram uma ambivalência e uma cegueira de atitudes que é preciso considerar seriamente. Salvar a família, supõe cuidar dos valores pessoais, do respeito ao outro, da tolerância e de certa dose de humildade. Isso pode tornar viável o conviver construtivamente.

http://www.opovo.com.br/app/opovo/dom/2015/09/12/noticiasjornaldom,3503152/artigo-amorosidade-familiar.shtml

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Camarim



Camarim ( Cartola e Herminio Bello de Carvalho)


"No camarim as rosas vão murchando
E o contra-regra dá o último sinal
As luzes da plateia vão se amortecendo
E a orquestra ataca o acorde inicial
No camarim nem sempre há euforia
Artista de mim mesma, nem posso fracassar
Releio os bilhetes pregados no espelho:
Me pedem que jamais eu deixe de cantar.

Caminho lentamente e entro em contra-luz
E a garganta acende um verso embriagador
O corpo se agita e chove pelos olhos
E um aplauso escorre em cada refletor
Pisando esta ribalta, cantando pra vocês
De nada sinto falta, sou eu mais uma vez
As rosas vão murchar, mas outras nascerão
Cigarras sempre cantam, seja ou não verão!
Cigarras sempre cantam, seja ou não verão!"

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Padaria - Mariana Aydar e Mário Manga



Padaria (Mário Manga)

Sim, você sempre foi a luz da minha escuridão
A estrada por onde passava o meu caminhão
Forte conteúdo que eu sempre imaginei
Bochechinhas roseadas como as de um rei

Namoramos um pouquinho nos demos tão bem
Na igreja diante do altar nós dissemos amém
E até hoje eu vivo com a maior alegria
Sinceramente ainda te acho uma simpatia

Juntos nós tivemos filhos
Juntos ganhamos dinheiro
Juntos conhecemos quase todo estrangeiro
Juntos formamos um lar
Juntos um videocassete
Juntos nós compramos dois Del Rey e um Chevette

E agora só falta a gente abrir uma padaria
Vender pão quentinho à noite
Café com broa de dia
E agora só falta a gente abrir uma padaria
Vender pão quentinho à noite
Café com broa de dia
(guitarras)

Você é meu doce gostoso
Que eu como e limpo o prato
Você é meu pãozinho fresco sem bromato
Você é minha vitamina
O meu sonho com recheio
Meu quindim, meu pão-de-ló
Com chantilly no meio

Por isso a gente deve abrir uma padaria
Vender pão quentinho à noite
Café com broa de dia
E agora só falta a gente abrir uma padaria
Vender pão quentinho à noite
Café com broa de dia
E agora só falta a gente abrir

Canção das Mulheres do Harém de Lampião



Canção das Mulheres do Harém de Lampião
(Nico Nicolaiewsky, Adelbal Freire Filho)

Pelas mil e uma noites do sertão
Mil e um pecados, coração
Por esse sol que arde de desejo
Pelo chão, que é o mar de dom sebastião
Eu te persigo, virgulino lampião

Ai bagdá
Ai ceará
Os meu pecados, ai ai ai
Ai bagdá
Ai ceará
Os meu pecados... Ai

Antes que você morra degolado
E vá viver no reino do malvado
Quero te dar meu sol que arde de desejo
Te contar as histórias do sultão
Que vem da pérsia encontrar com lampião
Pelas mil e uma noites do sertão
Mil e um pecados coração
Por esse sol que arde de desejo
Pelo chão que é o mar de dom sebastião
Eu te persigo, virgulino lampião

Ai bagdá
Ai ceará
Os meu pecados, ai ai ai
Ai bagdá
Ai ceará
Os meu pecados... Ai

Mas se eu achar seu corpo abandonado
Sem cabeça, lampião, meu adorado
Vou rasgar o sol que arde de desejo
E te amar
Te arrastar pelo sertão
Te transformar no meu dom sebastião
Pelas mil e uma notes do sertão
Mil e um pecados coração

Carlos Navas


terça-feira, 1 de setembro de 2015

Fortaleza envergonhada

Por Sandra Helena Souza

Imaginei esses dias a principal associação empresarial de qualquer cidade alemã recebendo um palestrante deputado que desembarcado no aeroporto local dissesse publicamente: “nós já vencemos uma vez, fomos derrotados, mas voltaremos” referindo-se ao 3º Reich. Soa absurdo, eu sei. Se mudarmos de continente e colocarmos a sandice no Chile, Uruguai ou mesmo Argentina, países que enfrentaram seus passados de ditadura como recomenda a internacional “Justiça de Transição” para consolidar consensos democráticos nacionais, haverá enorme dificuldade de crer razoavelmente em acontecimento dessa espécie. Mas a realidade costuma superar nossas piores distopias.

O protagonismo político do CIC colocou o Ceará na primeira página do País, o que se costuma chamar “A Era Tasso”, dos empresários “esclarecidos” no poder. Inúmeros trabalhos acadêmicos se referem a uma revolução burguesa tardia entre nós, uma “modernização conservadora” que, não obstante, representou avanços em setores diversos, da economia aos direitos humanos, como de resto em todo o País, desde o período da redemocratização. Os avanços, sociais e político-institucionais, ficaram bem aquém das promessas; negá-los, entretanto, é equívoco crasso.

Mas momentos políticos conturbados como o que vivemos promovem provas a céu aberto onde todos somos testados. E a pergunta fundamental é: o que entendemos por democracia? Ao desembarcar em Fortaleza, depois de proferir as bizarrices de praxe, Jair Bolsonaro bradou: “nós os derrotamos em 64 e vamos derrotá-los de novo”, ovacionado por uma ruidosa claque. Fiquei estupefata ao saber que ele daria uma palestra no CIC sobre “Ética na Política”. Compromissos não me permitiram comparecer. Procurei e soube que não há registro audiovisual algum desse sinistro.

O epíteto de “polêmico” hoje encobre discursos tenebrosos, assim como a ideia mal concebida entre nós de “liberdade de expressão”. Não há pactos consensuais sobre o que significa ao menos Estado de Direito, não só entre manifestantes ignorantes, mas entre uma entidade que já teve peso político determinante. Eu gostaria imensamente de ver a entrevista a que o deputado foi submetido na ocasião. As perguntas da imprensa são todas sobre corrupção, esse nosso encobrimento preferido. Queria ter podido entrevistá-lo. Meu aluno mais negligente faria perguntas consistentes sobre golpe de Estado, torturas e desaparecidos políticos. Sobre misoginia, homofobia e racismo, não seria necessário. Já conhecemos amplamente sua posição.

Esse acontecimento fala mais alto do que os cartazes infames perguntando por que a presidente não foi enforcada no Doi-Codi. Não se trata apenas de malucos nas ruas, mas de uma instituição respeitável que acolhe, a título de “democracia”, a palavra de alguém que estaria disposto, sem reservas, a defender isso hoje mesmo. Com convicção e aplausos. Alguém duvida?

Ética na Política? Bolsonaro? Façam-me o favor. Nada mais que um acinte. Vergonha moral, para nós e para o mundo civilizado.

http://www.opovo.com.br/app/opovo/dom/2015/08/22/noticiasjornaldom,3492090/artigo-fortaleza-envergonhada.shtml

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Por que decidi processar Gilmar Mendes

Por Luis Nassif

O Ministro Gilmar Mendes me processou, um daqueles processos montados apenas para roubar tempo e recursos do denunciado. Eu poderia ter ficado na resposta bem elaborada do meu competente advogado Percival Maricatto.
Mas resolvi ir além.
Recorri ao que em Direito se chama de "reconvenção", o direito de processar quem me processa.
A razão foram ofensas graves feitas por ele na sessão do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) na qual não conseguiu levar adiante a tentativa canhestra de golpe paraguaio, através da rejeição das contas de campanha de Dilma Rousseff.
Todo o percurso anterior foi na direção da rejeição, inclusive os pareceres absurdos dos técnicos do TSE tratando como falta grave até a inclusão de trituradores de papel na categoria de bens não duráveis.
Não conseguiu atingir seu propósito graças ao recuo do Ministro Luiz Fux, que não aceitou avalizar sua manobra. Ele despejou sua ira impotente sobre mim, valendo-se de um espaço público nobre: a tribuna do TSE.
 Certamente quem lucrou foram os blogs sujos, que ficaram prestando um tamanho desserviço. Há um caso que foi demitido da Folha de S. Paulo, em um caso conhecido porque era esperto demais, que criou uma coluna 'dinheiro vivo', certamente movida a dinheiro (...) Profissional da chantagem, da locupletação financiado por dinheiro público, meu, seu e nosso! Precisa ser contado isso para que se envergonhe. Um blog criado para atacar adversários e inimigos políticos! Mereceria do Ministério Público uma ação de improbidade, não solidariedade”.
O que mereceria uma ação de improbidade é o fato de um Ministro do STF ser dono de um Instituto que é patrocinado por empresas com interesses amplos no STF em ações que estão sujeitas a serem julgadas por ele. Dentre elas, a Ambev, Light, Febraban, Bunge, Cetip, empresas e entidades com interesses no STF.
Não foi o primeiro ato condenável na carreira de Gilmar. Seu facciosismo, a maneira como participou de alguns dos mais deploráveis factoides jornalísticos, a sem-cerimônia com que senta em processos, deveriam ser motivo de vergonha para todos os que apostam na construção de um Brasil moderno. Gilmar é uma ofensa à noção de país civilizado, tanto quanto Eduardo Cunha na presidência da Câmara Federal.
A intenção do processo foi responder às suas ofensas. Mais que isso: colocar à prova a crença de que não existem mais intocáveis no país. É um cidadão acreditando na independência de um poder, apostando ser possível a um juiz de primeira instância em plena capital federal não se curvar à influência de um Ministro do STF vingativo e sem limites.
Na resposta, Gilmar nega ter se referido a mim. Recua de forma pusilânime.
“o Reconvindo sequer faz referência ao nome do Reconvinte, sendo certo que as declarações foram direcionadas contra informações difamatórias usualmente disseminadas por setores da mídia, dentro dos quais o Reconvinte espontaneamente se inclui”.
Como se houvesse outro blog de um jornalista que trabalhou na Folha, tem uma empresa de nome Agência Dinheiro Vivo e denunciou o golpe paraguaio que pretendeu aplicar na democracia brasileira.
A avaliação do dano não depende apenas da dimensão da vítima, mas também do agressor. E quando o agressor é um Ministro do Supremo Tribunal Federal, que pratica a agressão em uma tribuna pública - o Tribunal Superior Eleitoral - em uma cerimônia transmitida para todo o país por emissoras de televisão, na verdade, ele deveria ser alvo de um processo maior, do servidor que utiliza a esfera pública para benefício pessoal.

http://jornalggn.com.br/noticia/porque-decidi-processar-gilmar-mendes

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Por que o Lamas? Uma declaração de amor sobre um lugar maior do que todos nós

Por Thales Machado

Aos que dizem que vou muito ao Lamas respondo: não há ser humano capaz de ter ido muito ao Lamas. Aos que franzem a testa e perguntam o porquê, ora pois, eu respondo. Cento e quarenta e um anos. Não há ser bípede vivente, tomador de chope ou de mate, ainda que bata ponto seis ou oito vezes por semana, capaz de ser exageradamente assíduo em um lugar com tamanha altivez temporal.

O Lamas é a alma, a gente é só o corpo, cada dia mais regado com chope não tão bem tirado, empanturrado com um filé á francesa (não sem antes um pastel). O corpo vai, o Lamas fica. Sempre foi assim. O Seedorf se achava maior que o Botafogo, o John Lennon em algum momento se achou maior que os Beatles e até o Lula se acha, e talvez seja, maior que o PT. Mas jamais conheci um cliente que se achasse maior que o Lamas. Se existe, não é cliente. Pode até ir muito, mas não merece tão nobre alcunha, nunca deve ter sido chamado pelo nome, nunca teve amor em seu colarinho.
Talvez venha daí a fama de que os garçons do Lamas são mal educados. Talvez de uma noção completamente errônea de que o cliente é maior que o bar. Alguns são, normal. Somos bem maiores do que a maioria dos estabelecimentos, que inclusive frequentamos, por aí. Triste é do ser humano que não se acha mais importante do que, sei lá, um Devassa no Leblon. Triste do bebum com menos personalidade que um Belmonte em São Conrado. Que procure a terapia aquele ser que se acha mais atraente do que uma caipisaquê no Astor. O que não dá é para o sujeito se achar mais atrevido que o Bar Luiz, mais esperto que a madrugada no Galeto Sats ou simplesmente mais importante que o Lamas. Tradição não se supera. Nem se tenta superar.

Quando o Lamas nasceu, Flamengo não era time, era só bairro. E nem o próprio Lamas ficava lá. Ficava no Largo do Machado que era só Largo, jamais poderia imaginar que se tornaria estação de metrô. Metrô era coisa tão do futuro quanto República, abolição da escravidão, fax, e-mail, Twitter ou Tinder. Dar check in no Lamas era coisa de maluco, afinal, check in só no aeroporto, e aeroporto, no Rio, só existiria quase SESSENTA anos depois da fundação do Lamas, em 1936, quando o Santos Dumont (que, pessoa, deve ter ido ao Lamas), foi inaugurado.

Por seis décadas, ninguém foi lá tomar um chope antes de um voo, pois não tinha voo, que na época tinha acento. Por sete, nenhum ser comentou lá, enquanto comia um milanesa, os horrores do nazismo, pois ou não tinha ocorrido ainda, ou o mundo não sabia, de novo ainda. Por oito, brasileirinhos encheram o pote lamentando nunca terem ganho um Mundial, com a ressalva que o bar é mais velho que a bola no Brasil e que a Copa do Mundo é uma ninfeta perto do filé à francesa. Por quase ONZE, (e aí percebam que quase onze décadas é mais que um século) ninguém falou mal do PT enquanto comia um profiterólis porque simplesmente não existia PT, como querem alguns para o hoje. O profiterólis, pelo contrário, ninguém nunca falou mal e segue lá, sem crise mundial que o abata, com uma calda de chocolate quente que derrete o coração até de quem pede a volta da ditadura, contam alguns.

O Lamas sabe o que é ditadura: a militar, a do Getúlio e a do Poder Moderador. Funcionou sob as regras das sete Constituições que o Brasil já teve. Viveu as diferenças entre o PT e o PSDB, viu ali de pertinho o suicídio de Getúlio, frequentador que, mesmo ele, sabia do seu tamanho perante o restaurante histórico. Teve que se matar para virar História sabendo que era incapaz de ser História como o Lamas é, simplesmente por nunca morrer desde 1874. “Fico na vida para ficar na História”, diria o Lamas, se falasse. De Dom Pedro a Dona Dilma, o Lamas segue, como um vampiro um pouco cansado, antes aguentando a madrugada toda, hoje “só” até as 3h em dias de semana e, com esforço, até 5h nas sextas e sábados. Todo dia depois das 19h tem pratos promocionais.

Sábado agora, quatro de abril, o Laminhas faz cento e quarenta e um anos. Eu, que comecei a beber lá quando já tinham se passado CATORZE décadas, almoçarei, jantarei e se bobear volto para um chopinho no final no dia em que o Lamas debutará em sua décima quinta década de vida. E não venham dizer que eu vou lá demais. Repito: não há ser humano capaz.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

SIBA

Via Bruno Perdigão




MARCHA MACIA

Acorda amigo, o boato era verdade
A nova ordem tomou conta da cidade
É bom pensar em dar no pé quem não se agrade
Sendo você eu me acomodaria...
Não custa nada se ajustar às condições
Estes senhores devem ter suas razões
Além do mais eles comandam multidões
Quem para o passo de uma maioria?

Progrediremos todos juntos, muito em paz
Sempre esperando a vez na fila dos normais
Passar no caixa, voltar sempre, comprar mais
Que bom ser parte da maquinaria!
Teremos muros, grades, vidros e portões
Mais exigências nas especificações
Mais vigilância, muito menos excessões
Que lindo acordo de cidadania!

Sai!
A gente brinca, a gente dança
Corta e recorta, trança e retrança
A gente é pura­ponta­de­lança
Estrondo, Marcha Macia!

Vossa Excelência, nossas felicitações
É muito avanço, viva as instituições!
Melhor ainda com retorno de milhões
Meu deus do céu, quem é que não queria?
Só um detalhe quase insignificante:
Embora o plano seja muito edificante
Tem sempre a chance de alguma Estrela irritante
Amanhecer irradiando dia!

Sai!
A gente brinca, a gente dança
Corta e recorta, trança e retrança
A gente é pura­ponta­de­lança
Estrondo, Marcha Macia!

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Ser contra cotas raciais é concordar com a perpetuação do racismo

Via Mateus Perdigão

Por Djamila Ribeiro

É comum algumas pessoas não entenderem por que afirmamos que pessoas contra cotas raciais são racistas. Há quem pense que racismo diz respeito somente a ofensas, injúrias e não percebem o quanto vai muito mais além: se trata de um sistema de opressão que privilegia um grupo racial em detrimento de outro.

No Brasil, foram 354 anos de escravidão, população negra escravizada trabalhando para enriquecer a branca. No pós-abolição, no processo de industrialização do Brasil, incentivou-se a vinda dos imigrantes europeus pra cá. Muitos inclusive receberam terras do Estado brasileiro, ou seja, foram beneficiados por ação afirmativa para iniciarem suas vidas por aqui. Tiveram acesso a trabalho remunerado e, se hoje a maioria de seus descendentes desfrutam de uma realidade confortável foi porque foram ajudados pelo governo pra isso.

Em contrapartida, para a população negra não se criou mecanismos de inclusão. Das senzalas fomos para as favelas. Se hoje a maioria da população negra é pobre é por conta dessa herança escravocrata e por falta da criação desses mecanismos. É necessário conhecer a história deste País para entender porque certas medidas, como ações afirmativas, são justas e necessárias. Elas precisam existir justamente porque a sociedade é excludente e injusta para com a população negra.

Cota é uma modalidade de ação afirmativa que visa diminuir as distâncias, no caso das universidades, na educação superior. Mesmo sendo a maioria no Brasil, a população negra é muito pequena na academia. E por quê? Porque o racismo institucional impede a mobilidade social e o acesso da população negra a esses espaços.

Pessoas brancas são privilegiadas e beneficiadas pelo racismo. Um garoto branco de classe média, que estudou em boas escolas, come bem, aprende outros idiomas, tem lazer e passa em uma universidade pública, pode se achar o máximo das galáxias, mas na verdade o que ocorre é que ele teve oportunidades na vida pra isso. Qual mérito ele teve? Nenhum. O que ele teve foi condições pra isso.

Um garoto negro pobre, que estuda nas péssimas escolas públicas, come mal, não tem acesso a lazer, para passar em uma universidade terá muito mais dificuldades para isso porque não teve as mesmas
oportunidades. Cota não diz respeito a capacidade, capacidade sabemos que temos; cota diz respeito a oportunidades. São elas que não são as mesmas.

Se o Estado brasileiro racista priva a população negra dessas oportunidades é dever desse mesmo Estado construir mecanismos para mudar isso. O movimento negro sempre reivindicou cotas juntamente com a melhoria do ensino de base. Só que, segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), demoraria por volta de 50 anos para que a educação de base fosse de qualidade. Quantas mais gerações condenaríamos sem as cotas?

Cotas e investimento no ensino de base não são tópicos excludentes, ao contrário, devem acontecer concomitantemente. Cotas não são pensão da previdência, são medidas emergenciais temporárias que devem existir até as distâncias diminuírem.

Minha avó materna nascida na década de 20 teve de começar a trabalhar aos 9 anos de idade como empregada doméstica. O Estado brasileiro não garantiu seu direito à educação. Ela contava que a patroa colocava um banquinho para que ela alcançasse a pia para lavar as louças enquanto os filhos da patroa estudavam, viajavam, comiam bem.

Joselia Oliveira, atleta de levantamento de peso, possui uma história similar. Trabalhou como empregada, cuidava dos filhos da patroa enquanto os mesmo faziam balé, inglês. “Sou do interior do Rio de Janeiro, aos 6 anos já subia no banquinho para lavar louças e cuidava de crianças menores. Algumas dessas famílias me trouxeram para o Rio de Janeiro com a promessa de cuidarem de mim, mas eu só trabalhava, não recebia salários e ganhava roupas e brinquedos usados. Muitas meninas do meu bairro tiveram o mesmo destino. Só aos 14 anos fui entendendo que aquilo era exploração, mas recuperar tanto tempo perdido não é fácil. Por isso, cotas são necessárias”, diz.

Joselia nasceu em 1978 e ainda enfrentou a mesma realidade de minha avó, o que na verdade é a realidade de muitas mulheres negras. Infelizmente, essa ainda é a regra. E, para se pensar políticas públicas, devemos nos ater à regra e não a exceções. Utilizar o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa como exemplo, quando a maioria da população negra está na pobreza, é além de um argumento falho, ignorância e má fé.

Logo, ser contra uma medida que visa combater essas distâncias criadas pelo racismo é ser a favor da perpetuação do racismo. E se você se coloca contra, isso te torna o quê?

Pesquisem sobre o conceito de equidade aristotélica (sim, de Aristóteles, o filósofo grego): as ações afirmativas também se baseiam nele, que basicamente significa tratar desigualmente os desiguais para se promover a efetiva igualdade. Ou seja, se duas pessoas vivem em situações desiguais, não se pode aplicar o conceito de igualdade abstrata porque concretamente é a desigualdade que se verifica. Aquela pessoa que está em situação de desigualdade precisa de mecanismos que visem o acesso dela à cidadania.

Em relação a pessoas brancas pobres, existem as cotas para quem é oriundo de escolas públicas, as cotas sociais. Mas as raciais também são necessárias porque pessoas brancas, por mais que pobres, possuem mais possibilidades de mobilidade social, uma vez que não enfrentam o racismo.

Façam um passeio por um shopping center e vejam a cor dos vendedores e vendedoras, das gerentes. Negros são os mais pobres entre os pobres e só a cota social não nos atinge. Beneficiaria somente pessoas brancas.

Cotas raciais porque esse País possui uma dívida histórica para com a população negra. Dizer-se anti-racista e ser contra as cotas é, no mínimo, uma contradição cognitiva e, no máximo, racismo.

Ou se lida com isso ou se repensa e questiona os próprios privilégios. Fazer-se de vítima é reclamar de exclusões que nunca passou.

http://www.cartacapital.com.br/sociedade/ser-contra-cotas-raciais-e-concordar-com-a-perpetuacao-do-racismo-1359.html

Passo Torto

quinta-feira, 2 de julho de 2015

CHATO

Por Henrique Araújo

A vida está chata, mas reclamar o tempo inteiro é muito chato. Mas que está chata, está. Está chato aderir a qualquer causa, está chato recusar. Está chato ficar calado, está chato falar. Está chato gostar de sertanejo, está chato desgostar. Até o Faustão, que já era especialmente chato, ficou ainda mais depois que a Marieta Severo – que é tudo, menos chata – disse, para espanto do apresentador, que o Brasil não era tão ruim assim. E então um exército de chatos implacáveis surgiu galopando na colina para bradar com a força descomunal da estupidez que a atriz é uma tremenda... chata. Pobre Marieta, pobres de nós.

Na política, então, nem se fala. A situação é chata, a oposição também. E as entrevistas do Jô, que já eram chatas havia uns dez anos, ficaram ainda mais. Não pela Dilma, mas porque ninguém tem mais o direito de não xingar. Xingam-se médicos cubanos, travestis e adolescentes adeptas do candomblé com uma naturalidade doentia. Xingam-se os gays e os infratores. Talvez a culpa seja do futebol. Com essa seleção chata e um técnico mais chato ainda, xingar virou o novo esporte nacional. Das arenas luxuosas, as vaias e palavrões transferiram-se para as varandas. O Brasil, que já foi o país do futuro, hoje é um grande varandão.

Quando foi que viver se tornou essa sucessão de chatices? Lembro que, ainda no ano passado, o cenário era um pouco diferente. As pessoas conseguiam se suportar numa boa. De lá pra cá, algo se degenerou. Fui dormir num país que exige a felicidade 24 horas por dia a acordei noutro cuja norma é parecer irrevogavelmente chato. Houve um tempo em que o chato era só chato e pronto, não tinha mais discussão, apenas um sorriso amarelo ou um silêncio constrangedor. Esse era o chato clássico. Até nascer o chato 2.0, que, não satisfeito com a própria chatice, trata de amplificá-la, estendendo o alcance e a durabilidade da própria intolerância.

Dizem que o culpado não é o Dunga, mas a bolha, que cria a sensação de falar com as paredes. Ou seja, já éramos chatos, apenas não interagíamos tanto. Por obra das redes sociais, que conecta uma boçalidade com outra, hoje o bater das asas de uma borboleta no Facebook provoca um tsunami de ódio no Twitter e vice-versa. Estamos irremediavelmente conectados – e isso às vezes é muito chato.

Num passado recente, o ciclo de vida de uma discussão era limitado, e não existia essa figura já institucionalizada de a “polêmica da semana”. Ninguém vive mais sem a polêmica da semana. Quando não há uma, é preciso fabricá-la. Na era da desconexão, qualquer cizânia morria em menos de um mês para reaparecer, fantasmagoricamente, na retrospectiva do final do ano. Hoje, a chatice é uma espiral que se retroalimenta, e o ódio da semana passada desfilará na sua tela de amanhã como um morto-vivo requentado.

Detesto sertanejo universitário – lá vem o chato. Odeio Zeca Camargo – chato de esquerda. Já curti muito Zezé di Camargo & Luciano e até canto Evidências no karaokê– chato nostálgico. Chorei a morte do Cristiano Araújo – chato fingido. Sertanejo é a música do povo – chato populista. Sertanejo é lixo da indústria cultural – chato elitista. Não tenho qualquer interesse nem em sertanejo nem nesse debate – chato indiferente. Vejo razão nos dois lados – chato eclético.

Não há como escapar. Só espero que essa onda passe. Mas esperar nunca foi tão chato.

http://www.opovo.com.br/app/colunas/henriquearaujo/2015/07/02/noticiashenriquearaujo,3463389/chato.shtml

Chatos em Desfile - Jota Canalha


 Lembrei do Jota Canalha após a crônica "Chato" de Henrique Araújo, no O POVO de hoje.


Começaria tudo outra vez


Por Marcos Sampaio

Logo na primeira cena do documentário Começaria tudo outra vez, Cauby Peixoto aparece com um semblante entre o cansaço e a mansidão. O compasso da respiração entrega que estar ali no palco não é mais um exercício simples para o cantor de mais de 80 anos. No entanto, ele não dispensa o paletó de lantejoulas brilhantes, a peruca encaracolada e a maquiagem discreta que já fazem parte do seu personagem.

Ecoando os versos de Caetano Veloso (“Minha voz, minha vida, meu segredo e minha revelação”), a cena que abre o filme de Nelson Hoineff resume o personagem que vai ser descrito nos próximos 90 minutos. Com depoimentos e imagens de arquivo, Começaria tudo outra vez, apresenta o retrato de um homem que só quer existir sob as luzes do palco, mantém sua agenda de shows e acaba de lançar um tributo ao ídolo Nat King Cole.

Hoineff perseguiu o cantor durante um bom tempo. Foram dois anos de aproximação e mais quatro de filmagem. Com isso, o diretor conseguiu extrair momentos saborosos do intérprete que imortalizou Conceição. Um dos mais chamativos é ouvir Cauby falando sobre experiências sexuais com outros garotos na infância. “Chegou um momento em que eu o coloquei muito a vontade. Nós estávamos falando sobre os ternos, deitados sobre a cama dele. Já tinha virado uma conversa de velhos amigos, com zero constrangimento”, lembra Hoineff, por telefone, revelando que conseguiu a fala driblando o olhar sempre atento da empresária e cuidadora Nancy Lara, que está sempre ao lado do cantor.

Apesar da sexualidade do homem que foi sex symbol nos anos 1950 ser motivo de discórdia desde então, Hoineff nega ser este o ponto alto de Começaria tudo outra vez. “Acho que o importante não é ser homossexual ou não. Nos anos 1950 já seria uma tolice, imagine hoje. Em represália, ele nunca falou disso. No entanto, o filme permitiu que, pela primeira vez, ele falasse nisso”, defende o diretor que optou por não contar uma história cronológica ou didática. Seguindo os passos do cantor por bastidores e em casa, o filme apresenta pistas sobre as causas e efeitos de uma carreira duradoura e ainda em plena atividade.

Depois de documentários retratando figuras como Paulo Francis (Caro, Francis), e Chacrinha (Alô, alô, Terezinha!), Hoineff sabe o que buscar nos seus personagens. “O que me interessa é a veia transgressora. Logo, não são documentários, mas filmes que se utilizam das pessoas para falar de transgressão”, define o diretor que encontrou nas dualidades de Cauby muito das suas transgressões. Entre o brega e o chique, o masculino e o feminino, o dono de uma das vozes mais admiradas do Brasil é também um homem calado e discreto, que, apesar de viver cercado pelo público, tem poucos amigos. “O que é grandioso nele é o olhar e eu vou buscá-lo ali. É isso que a gente tem que descobrir”, sugere.

SERVIÇO

Filme Cauby -Começaria tudo outra vezQuando: sexta,3, às 18h30 e domingo, 5, às 10h30
Onde: Cineteatro São Luiz
Ingressos: R$ 6 (inteira) e R$ 3 (meia)


http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2015/07/02/noticiasjornalvidaearte,3463392/bastidores-em-cena.shtml

Quem lucra com uma cidade sem memória?

Por Carlos Mazza

Centro de Fortaleza, quarta-feira, 17 de fevereiro de 1892. Após horas de cerco na Praça dos Leões, o governador Clarindo de Queiroz se rende às forças fiéis a Floriano Peixoto. Sobre a ruína da hoje restaurada estátua do General Tibúrcio, Clarindo encerra batalha que deixou 13 mortos e um Palácio da Luz crivado de balas. Estava deposto o Governo deodorista. A 1ª Constituição estadual cairia logo após.

1884. Aos 22 anos, Francisca Clotilde se torna a 1ª mulher a lecionar na prestigiada Escola Normal, no Centro. De raiz contestadora e pena afiada, a professora desafia um universo machista e, usando pseudônimos de homens, publica romances controversos – sobre casamentos arranjados, mulheres divorciadas.

Praça José de Alencar, domingo, 21 de janeiro de 1912. Passeata contra Nogueira Acioly termina com duas crianças mortas, uma delas executada a sangue frio. 1921. Placa da farmácia Rodolfo Teófilo, na hoje Barão do Rio Branco, é espatifada diante de multidão apreensiva. 1974. O Castelo do Plácido, um autêntico castelo medieval em plena Aldeota, é demolido para construção de um supermercado Romcy.

Em muitas cidades, turistas se acotovelariam em visitas guiadas para ouvir contos da batalha de Clarindo. Em outras, Francisca seria inspiração para meninas que têm sonhos maiores do que as expectativas impostas. Em outras, ainda, a mera possibilidade de derrubada de um casarão seria rechaçada. Mas não aqui.

Resta último parágrafo: sábado, 27 de junho de 2015. Casarão onde funcionava a antiga Promotoria da Saúde Pública, na Aldeota, é demolido. No lugar, será erguida vistosa torre comercial, com 20 pavimentos e quatro subsolos para estacionamento.

Diante desses e outros absurdos, é comum ouvir o coro de que “Fortaleza não tem memória”. Errado. Fortaleza tem memória. Mas tem também poder público omisso e um projeto de poder econômico que perdurou séculos baseado na supressão da memória. Do que adianta consciência diante de interesse maior?

Tombamentos e projetos de lei são caminhos. Resta pressionar. É preciso aprender não só a amar a Cidade, mas também a preservá-la - seja você um vereador da base aliada ou um desses que aplaudem atentados incendiários contra o Palácio do Bispo.

http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2015/07/02/noticiasjornalopiniao,3463534/quem-lucra-com-uma-cidade-sem-memoria.shtml

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Emicida - Boa Esperança



Boa esperança

Por mais que você corra irmão
Pra sua guerra vão nem se lixar
Esse é o xis da questão
Já viu eles chorar pela cor do orixá?
E os camburão o que são?
Negreiros a retraficar
Favela ainda é senzala jão
Bomba relógio prestes a estourar

O tempero do mar foi lágrima de preto
Papo reto, como esqueletos, de outro dialeto
Só desafeto, vida de inseto, imundo
Indenização? Fama de vagabundo
Nação sem teto, Angola, keto, congo, soweto
A cor de Eto'o, maioria nos gueto
Monstro sequestro, capta-tês, rapta

Violência se adapta, um dia ela volta pu cêis.
Tipo campos de concentração, prantos em vão
Quis vida digna, estigma, indignação
O trabalho liberta, ou não
Com essa frase quase que os nazi, varre os judeu – extinção
Depressão no convés
Há quanto tempo nóiz se fode e tem que rir depois
Pique jack-ass, mistério tipo lago ness, sério és,
Tema da faculdade em que não pode por os pés
Vocês sabem, eu sei
Que até bin laden é made in usa
Tempo doido onde a KKK, veste obey ( é quente memo )
Pode olhar num falei?
Nessa equação, chata, policia mata – Plow!
Médico salva? Não! Por que? Cor de ladrão
Desacato invenção, maldosa intenção,
cabulosa inversão, jornal distorção
meu sangue na mão dos radical cristão
transcendental questão, não choca opinião
silêncio e cara no chão, conhece?
Perseguição se esquece? Tanta agressão enlouquece
Vence o datena, com luto e audiência
Cura baixa escolaridade com auto de resistência
Pois na era cyber, ceis vai ler,
Os livro que roubou nosso passado igual alzheimer, e vai ver
Que eu faço igual burkina faso
Nóiz quer ser dono do circo
Cansamos da vida de palhaço
É tipo moisés e os hebreus, pés no breu
Onde o inimigo é quem decide quando ofendeu
(cê é loco meu)
no veneno igual água e sódio
vai vendo sem custódio,
aguarde cenas no próximo episódio
cês diz que nosso pau é grande
espera até ver nosso ódio

Por mais que você corra irmão
Pra sua guerra vão nem se lixar
Esse é o xis da questão
Já viu eles chorar pela cor do orixá?
E os camburão o que são?
Negreiros a retraficar
Favela ainda é senzala jão
Bomba relógio prestes a estourar

Xeque-Mate - Edu Krieger



XEQUE-MATE (Edu Krieger)

Diz aí o que é pior
Legalizar o aborto
Ou saber que aquele menor
Pela mão do sistema também vai ser morto
Eis aí o xeque-mate
Legalizar o entorpecente
Ou saber que o tráfico abate
A cada minuto mais um inocente

Quando ela engravidou
Não tinha a menor condição
Pois aquele pequeno embrião
Jamais poderia ganhar seu amor
Ela então procurou o doutor
Mas a clínica é clandestina
A polícia invadiu dando show
“Você não é mãe, você é assassina”

E o apresentador
Do programa da televisão
Aplaudiu a polícia e gritou
“Quem faz um aborto é filho do cão”
O recém-deputado-pastor
Que foi recorde na votação
Disse ao povo que Deus dá a vida
E mãe homicida não ganha perdão

E nasceu mais um coitado
Apanhando da mãe todo dia
E a mulher toda hora dizia
“Se fosse por mim eu teria abortado”
O moleque cresceu sem afeto
Do seu pai nunca teve notícia
Desprezado desde que era feto
Com medo da mãe e também da polícia

Quando fez quatorze anos
Já sabia o que é ser vida louca
E fazia um monte de planos
Queria um dia ser dono da boca
Quando a guerra sangrenta estourou
Contra a forte facção rival
Uma bala perdida encontrou
Um pacato senhor que olhava o jornal

Nunca usou droga nenhuma
Era exemplo de pai de família
Mas a bala de quem engatilha
Atinge também quem não cheira nem fuma
A polícia cercou a favela
Foi porrada pra tudo que é lado
Gente de bem que também mora nela
Acaba pagando por ser favelado

Quatro mortos, três feridos
Novo saldo da guerra do pó
A polícia caçando bandidos
Às vezes atira sem mira e sem dó
Mas a bala não é de borracha
Nem é bomba de efeito moral
E ainda tem muita gente que acha
Que nesse país todo mundo é igual

E aquele adolescente
Que a mãe não queria gerar
Exibia o fuzil HK
E atirava em tudo que via na frente
De repente foi surpreendido
Por um tiro calibre 40
Seu esquálido corpo caído
Entrou num processo de síncope lenta

E o apresentador
Do programa da televisão
Aplaudiu a polícia e gritou
“Quem é traficante é filho do cão”
Quando a mãe chegou perto pra ver
O desfecho do filho bandido
Ouviu dele antes de morrer:
“Eu preferia jamais ter nascido”

Diz aí o que é pior
Legalizar o aborto
Ou saber que aquele menor
Pela mão do sistema também vai ser morto
Eis aí o xeque-mate
Legalizar o entorpecente
Ou saber que o tráfico abate
A cada minuto mais um inocente

Baião de Dois - Keiko Ikuta

segunda-feira, 29 de junho de 2015

A #partidA

por Isabela Fraga

A formação da #partidA, um partido feminista que pretende se embrenhar nas fissuras da política e torná-la democrática de fato. Conversamos com a filósofa Marcia Tiburi, uma das pensadoras do movimento, para entender: faz sentido misturar o feminismo nas práticas de governo tradicionais? Por quê?
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Isabela Fraga - Qual o lugar da #partidA como um partido em meio à crise da representação partidária?

Márcia Tiburi - Eu entendo que existem muitos afetos em jogo na política hoje em dia. E a política sempre foi construída na base de afetos, embora ela apareça para as pessoas como se uma construção puramente lógica, racional e estratégica. É claro que o caráter lógico e estratégico permeia os processos, mas a #partidA surge propondo outro afeto político, na contramão do afeto que sustenta, por exemplo, a estrutura autoritária na qual a gente vive e que faz parte da própria história do Brasil, que tem uma história bastante autoritária, escravocrata e cheia de ditaduras. O afeto que permeia o autoritarismo brasileiro é o ódio, que em certas épocas cresce e aparece com muita força. É o rechaço do outro, a negação do outro, a incapacidade de incluir o outro. Esse ódio sempre esteve latente, e eu acredito até que ele seja de fato estrutural da ordem política conhecida no Brasil e no mundo. Por isso, quando a #partidA surge, é movida por esse afeto "revolucionário" — entre aspas, porque não pretendemos destruir nem colocar uma outra estrutura em cena — digamos assim, trocar um poder por outro. O que eu vejo é que a gente transforma a ideia de partido numa outra coisa, a gente ressignifica a ideia de partido. E colocamos no lugar do termo poder — na história do patriarcado, da dominação masculina — a potência. Certo, vivemos numa crise de representação, mas, para as mulheres, essa crise sempre existiu. As mulheres nunca foram representadas na política. E, junto com as mulheres, todos os grupos oprimidos, toda uma população que deveria ser cidadã e que foi alienada dos seus direitos de cidadania. Chamar de feminismo já quer dizer que não somos tradicionais.

IF - Justificativas de teor moral são muito mencionadas por quem prefere se manter fora da política tradicional, que seria "suja" e corrupta — como você mesma diz algumas vezes. Quais os problemas dessa visão? A #partidA (ou, melhor, as mulheres até agora envolvidas) não vê problemas em sujar as mãos ou não há sujeira de fato?

MT - Criou-se no Brasil uma cultura antipolítica cujo discurso há muito tempo é: o poder corrompe, o poder é ruim, a política é um campo minado e um lugar terrível para se estar. Associamos a política à corrupção, à sujeira, ao mal. Essa ideia de política serve a quem? Serve a quem está no poder. E, no caso, o nome concreto do poder que está em jogo hoje e no qual a #partidA quer intervir é o poder enquanto governo. Por isso nós precisamos da forma "partido". Só que, por ser um partido feminista, ele já não é um partido como os outros — porque um partido feminista não é como os outros. Os valores, as práticas, os direitos desejados pelas mulheres são bastante diferentes dos valores, das práticas e dos modos de existir dos partidos tradicionais. Existem muitas pessoas ligadas à #partidA que convivem com instituições — seja algum partido de fato, universidades, poder judiciário ou a mídia. E essas pessoas não têm medo de viver em instituições. O partido é apenas mais uma instituição que deve nos servir como meio, e não como fim. Nisso, encontramos uma coisa muito bonita da #partidA: a ético-política feminista, um conceito que eu defendo teoricamente. E isso muda tudo, porque assim como as pessoas têm preconceito em relação a partidos, a esse "sujar as mãos", pensam que a forma partido é a forma que fomenta essa corrupção toda. Não precisa ser assim, e é por isso que nós almejamos uma bancada feminista. E almejamos a forma partido, mesmo que nós não venhamos a formalizar formalizar a #partidA — porque é possível que a nossa #partidA se mantenha como movimento, como já é. Pode ser que nós não formalizemos um partido porque talvez nós não precisemos da forma partido burocratizada e inscrita no TRE. Mas o que queremos é funcionar como um partido, pois o nosso movimento quer atingir a governalidade. Assim, propomos radicalmente uma democracia feminista, porque não acreditamos na existência de uma democracia que não contemple uma pauta, um projeto feminista. Gosto de citar a Mary Wollstonecraft, que no século XVIII brigava com Rousseau. Ela falava que o feminismo é uma luta pelos direitos da humanidade. Se a humanidade é de homens e as mulheres participam dela, então está errado. Queremos um feminismo que inclua todas as pessoas e singularidades. É por isso que a gente expande, aumenta, recria o feminismo — uma busca por singularidades, por uma democracia que, como escrevi esses dias, é uma democracia hard, não é a democracia de fachada.

IF - Mas se a #partidA não se transformar num partido formalizado, como intervir no governo?

MT -Uma das ideias que transitam hoje em certos grupos, sobretudo aqui em São Paulo (vamos ver como isso vai se constituir nas outras cidades), é que a gente apoie candidatos de outros partidos. A proposta da #partidA é empoderar mulheres e todos aqueles sujeitos que se reconhecem como mulheres e que desejam fazer política feminista. E também quem que não se diz mulher, mas que é feminista. Acreditamos também no feminismo dos homens — ele é mais complicado e precisa ser mais elaborado, inscrito dentro de um contexto. Hoje, vivemos num contexto de cotas para mulheres. Na nossa #partidA, teremos cotas para homens (risos). Brincando, mas também falando sério: é importante que os sujeitos dos privilégios na nossa cultura atual tenham a experiência das cotas. É provável que a gente não seja um partido formalizado para as próximas eleições. Mas a ideia é que a gente crie uma campanha — na minha cabeça, vamos ter todas as prefeitas do Brasil, as vereadoras etc. A gente quer a eleição, é nesse patamar de luta que a gente vai se inserir.
IF - Para superar a questão da uniformidade necessária ao conceito de partido, Carla Rodrigues, no blog do IMS, propõe que o referencial da partidA seja vazio. Como você entende essa proposta? Como levar isso para a construção do partido neste momento de sua formação?

Márcia Tiburi - foto de Pedro Silveira
MT - Eu entendi que o referencial vazio é um espaço de criação da política. Acho que esse referencial vazio tem a ver com a potência de construção de uma nova história, de um novo — seja histórico, filosófico, do pensamento, político. Estamos construindo uma nova política real, concreta, hard. Então, ao mesmo tempo que a #partidA é um nome de acolhida, ela é um "lançar", o #partiu. Partir rumo a uma aventura, no sentido de uma viagem, de explorar novas terras, o espaço desconhecido. Esse campo da política, tratado hoje em dia como uma selva cheia de monstros, é o espaço que a gente precisa atingir de maneira lendária. Entendo a #partidA como naqueles filmes de aventura, nos quais as pessoas vão para um lugar desconhecido. #partidA já virou o referencial, porque grafamos a hashtag que faz referência ao #partiu, e o A representa uma inversão, uma brincadeira. A gente leva tudo muito a sério, mas é num clima de criação.

IF - Na Suécia, a Feminist Intitiative foi o primeiro partido feminista europeu a conseguir um assento no parlamento. Em maio deste ano, a Inglaterra oficializou seu primeiro partido feminista. Também há partidos feministas na Índia e nas Filipinas. Como a partidA se insere nesse cenário global? Quais as influências e inspirações?

MT - Não teve essa influência direta. Eu sou muito brasileira e muito ligada no que acontece no Brasil. É claro que está todo mundo sentindo uma emoção radical desde 2013, desde os acontecimentos no Egito e na Grécia, tudo isso pegou muito a gente. Mas não há uma influência mais direta e estratégica. A #partidA é bem brasileiro, algo que vai ser construído do nosso jeito.

IF - Num congresso brasileiro de conservadorismo inédito como o de hoje (assim como a população que o elegeu, em sua maior parte contrária à regulação do aborto), no qual pautas retrógradas têm ganhado cada vez mais espaço, como um partido feminista pode ganhar força?

MT - Isso vai acontecer primeiramente em um nível de movimento — as coisas não são de um dia para o outro. E o Brasil precisa de uma bancada feminista forte, é por isso que vamos lutar. A bancada que temos hoje não é possível, não é justa, não é decente. Não é possível aceitar a política como ela está colocada ali. Essa bancada "BBB" [bancada do Boi, da Bíblia e da Bala] não faz sentido no nosso país. Esperamos que a nossa ético-político feminista seja tão forte e acolha de tal maneira os anseios e as potências brasileiras que a gente possa mudar justamente esse cenário. Os atores desse cenário precisam ser outros.

IF - Muitos mencionam as disputas internas do feminismo como um problema na formação de uma organização "única". A jornalista Yvonne Roberts disse no The Observer que "Uma aliança política de mulheres seria instável e eventualmente implodiria". Alguns partidos feministas pelo mundo de fato tiveram vidas curtas (como a Austrália, Belarússia e Islândia). Como fazer durar a #partidA no jogo da política tradicional?

MT - Isso precisa ser entendido dentro da história, da circunstância política de cada país. No caso do Brasil, também vamos precisar pensar. Qual a característica do poder patriarcal, do poder enquanto dominação masculina? A permanência no poder. O poder quer mais poder. O nosso poder é potência, é poder para fazer, para transformar — que vai servir à transformação da sociedade. Nesse sentido, se o partido realizar seu projeto e depois deixar de existir, eu não vejo mal algum. Ao mesmo tempo, enquanto as condições históricas que o obrigaram a existir não se transformarem, nós vamos querer continuar existindo. Nosso sonho é uma sociedade em que não exista mais autoritarismo, onde os direitos de todas as pessoas estejam realizados e que a gente não precise mais viver em luta. É claro que isso é uma utopia. Assim, em termos muito práticos, vamos precisar reproduzir nossa metodologia de atuação celular nesta construção da #partidA. Não podemos atuar como partidos atuam, de cima para baixo. Precisamos construir de maneira participativa e criativa as nossas demandas e decisões. Conversar com as pessoas, reconhecer as demandas singulares e coletivas num clima de sinceridade e respeito. Acreditamos de verdade que vamos crescer e avançar com uma operação política diferente, porque é dialógica. Existe uma afetividade que move todos os feminismos, mas não existe um feminismo como pensamento único — ele sempre foi diverso e complexo. Então não existe um feminismo que tenha mais razão do que o outro. Para mim, o feminismo é essa construção dessa diferença. O pensamento único tende ao autoritarismo, e o feminismo nunca poderia ser um autoritarismo.

IF - E vocês pensam em se identificar com uma esquerda ou com uma direita ou isso não é importante?

MT - Isso é muito importante, tanto quanto é desimportante. Os feminismos e a democracia feminista é uma superação da dicotomia direita-esquerda. Nós somos a superação disso. Como? A direita não reconhece a existência do feminismo. A esquerda também é conservadora perto do feminismo. Por isso eu costumo dizer que o feminismo é ainda mais à esquerda, mas na verdade ele é uma superação dessa dicotomia. Os partidos ainda acreditam que as mulheres possam estar ali na forma de cotas, que elas possam fazer o feminismo da mesma forma subalterna, secundária e inessencial em relação ao que significa a proposta socialista, por exemplo, no caso da esquerda. Então a gente não tem nenhum partido de esquerda que seja feminista. Pois nós teremos uma #partidA feminista de maneira essencial, prioritária e fundamental. E as questões concernentes aos direitos humanos, à solidariedade, à defesa das pautas do campo da esquerda, tudo isso entra no nosso feminismo. Mas numa inversão do jogo, o que é fundamental. Eu sou filiada ao PSOL, adoro as pessoas e as propostas, mas não é suficiente para aquilo que eu penso em termos de política. Em se propor feminista, a #partidA propõe um lugar de protagonismo das mulheres, próprio do feminismo em sua história.

IF - Como têm sido os encontros da #partidA até agora?

MT - Na verdade, ainda estamos no começo das nossas reuniões. Só tivemos três até agora, e o número de pessoas que aparecem nos encontros têm aumentado. As pessoas têm chegado na partidA com muita curiosidade, alegria e muito comprometimento. O desejo de fazer é muito emocionante. Uma coisa muito bonita que tem acontecido é o diálogo entre as gerações: feministas históricas e meninas mais novas que estão começando, é lindo.

http://vozerio.org.br/A-partidA-uma-aventura-feminista